Conectividade e treinamento de motoristas garantem viagens mais seguras

“A fadiga responde por um quinto dos acidentes graves nas rodovias brasileiras e  estas ocorrências estão relacionadas ao excesso de horas de trabalho.”

José Everardo Montal, Vice-Presidente da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego

 

O Brasil que está ligado ao transporte sabe da importância do trabalho prestado pelos motoristas de caminhão bem como das condições adversas em que trabalham. Quando o grupo observado é o dos caminhoneiros autônomos, o quadro torna-se ainda mais dramático já que as dificuldades expostas mostram um cenário de maior complexidade. Muitas vezes esses profissionais enfrentam jornadas de trabalho praticamente impossíveis e, em razão disso, a inevitável fadiga passara a ser tema no cotidiano do setor.

Apesar de muito se falar, pouco se conhece sobre estudos com embasamento científico para confirmar as especulações correntes e que pudessem servir de base para a adoção de políticas públicas de enfrentamento. Surge,  enfim, uma primeira luz para iluminar o debate.

Na Austrália, um estudo publicado no primeiro semestre deste ano, envolveu mais de 300 motoristas de caminhão e examinou cerca de 150.000 dados relativos à atenção ao dirigir e sono dos profissionais do volante. É a primeira pesquisa científica sobre fadiga de profissionais das estradas de que se tem conhecimento. Os resultados não surpreendem  mas tiveram o valor de confirmar muito do que já se sabia.

A pesquisa foi encomendada pela Comissão Nacional de Transporte da Austrália junto ao Centro de Pesquisa Cooperativa para a Atenção, Segurança e Produtividade; Universidade de Monash e Instituto da Respiração e do Sono. O trabalho durou aproximadamente 3 anos (2015 a 2018) e contou com o suporte da indústria de transporte pesado. O acesso ao resumo do trabalho, em inglês, pode ser feito em: https://www.ntc.gov.au/Media/Reports/(0FF2722E-5F5C-285E-8208-503A37BCC154).pdf 

Pela legislação australiana, motoristas de caminhão podem dirigir por um total de 12 horas por dia, limite ultrapassado constantemente. A Lei determina também que, a cada 4 horas, o motorista deve descansar por 30 minutos. Muitas transportadoras usam dois motoristas que se revezam ao volante. As dimensões continentais da Austrália (mais de 7,5 milhões de km2), com grandes distâncias entre os principais centros, se constituem em grandes dificuldades para uma fiscalização mais efetiva.

O estudo foi dividido em quatro objetivos ligados à fadiga dos motoristas profissionais:

  1. Dimensionar o nível de contribuição da fadiga de motoristas de veículos pesados nos acidentes rodoviários;
  2. Possibilidades de alterações na legislação nacional sobre veículos pesados, o que não é feito desde sua introdução, em 2008;
  3. Coleta de mais dados para dar suporte a eventuais e possíveis reformas da legislação;
  4. Avaliação da tecnologia existente para monitoramento do nível de alerta dos motoristas para apoiar possíveis mudanças na política atual e atos regulatórios. 

Principais resultados da pesquisa

 

Os maiores níveis de alerta foram observados no horário padrão de dirigir para turnos que começam entre 6h e 8h, incluindo todos os intervalos para descanso.

Os maiores riscos de aumento na sonolência ocorrem:

  • Após 15 horas de condução do dia quando o motorista inicia o turno antes das 9h.
  • Após 6 a 8 horas de condução noturna (quando o condutor inicia um turno à tarde ou à noite).
  • Após 5 turnos consecutivos ao dirigir novamente por mais de 13 horas.
  • Ao dirigir um turno adiantado que começa depois da meia-noite e antes das 6h.
  • Durante longas seqüências noturnas.
  • Quando o motorista inicia a jornada à noite e continua durante o dia.
  • Após longas jornadas de mais de sete turnos.
  • Durante os turnos mais intensos, ​​um intervalo de descanso de sete horas permite apenas cinco horas de sono – duração associada a um risco três vezes maior de acidentes. 

As principais conclusões do estudo foram:

 

  • Turnos de 12 horas foram associados com pelo menos o dobro do aumento de sonolência. Este aumento de risco ocorre após 6 a 8 horas em trabalho noturno (a partir da tarde para noite) e depois de 15 horas para turnos de trabalho que começam antes de 09:00 da manhã. 
  • Após 5 turnos consecutivos, a taxa de sonolência dobrou à partir das 13 horas no turno e triplicou em 15 horas no turno.
  • O maior estado de alerta foi verificado nos turnos que começam entre as 6-8 da manhã até 14 horas.
  • A condução noturna foi associada a um estado de alerta deficiente (o dobro da taxa de sonolência entre 22:00 e as 05:00 horas e o triplo entre a meia-noite e as 3:00 da manhã).
  • Para os turnos da noite, houve sonolência substancial após 8 ou mais horas de condução, com uma duplicação da taxa de sonolência, particularmente após 6 ou mais turnos seguidos.
  • A sonolência foi substancial durante os primeiros turnos de 1 a 2 horas (efeito do primeiro turno noturno), nas longas sequências noturnas e com os turnos que começam à noite e entram pelo dia seguinte).
  • Após longas sequências de jornadas de mais de 7 turnos, houve mais que o dobro de eventos de sonolência para intervalos de descanso mais curtos de 7-9 horas.
  • Mudanças de jornadas com intervalos de 7 horas permitiram apenas 5 horas de sono, uma duração previamente associada a um risco três vezes maior de acidentes. Houve taxa mais alta de microssono EEG (“pescada”) durante a condução​​. 

Pedimos ao Dr. José Everardo Montal, Vice-Presidente da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego, que opinasse sobre o estudo australiano e o comparasse ao que se sabe, hoje, sobre o assunto no Brasil. Seus comentários:

O mérito deste trabalho australiano, divulgado pelo Programa Volvo de Ssegurança no Trânsito, é confirmar vários pontos que já conhecíamos em relação aos efeitos da fadiga sobre os motoristas profissionais. Sabemos que ela responde por um quinto dos acidentes graves nas nossas rodovias, e que estas ocorrências estão relacionadas ao excesso de horas de excesso de trabalho”. Para ele, “como a fiscalização do controle de jornada no Brasil é precária, o problema não só não é atenuado, como pelo contrário é aumentado pelo uso de anfetaminas e outras drogas por parte de profissionais do volante”. 

Para Montal, é essencial que autoridades do setor juntamente com os especialistas em toxicologia juntem esforços para enfrentar o problema. “Sabemos que o tema preocupa o mundo todo mas vemos que nações adiantadas como a Austrália estão fazendo a coisa certa, pesquisando cientificamente o assunto para propor recomendações, mas com base em dados e informações concretas”.

Oxalá este estudo possa ser avaliado pelos diversos setores da vida nacional relacionados com o transporte de cargas e de passageiros e que produza propostas concretas de enfrentamento. Toda a comunidade está ciente da complexidade do tema, das muitas variáveis que precisam de tratamento adequado e essas passam por todas as áreas do transporte a começar pelos mais altos escalões da República, seguindo pela organização nos estados e regiões, alcançando federações regionais e sindicatos até chegar aos profissionais do volante, sejam eles autônomos ou mesmo contratados de empresas.

Este tipo de problema precisa ser enfrentado com rigor, mas ao mesmo tempo com habilidade, paciência e muitos estudos.

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